Leia a primeira crítica brasileira de "Relíquias da Morte - Parte 1"

Leia a primeira crítica brasileira de 'Relíquias da Morte - Parte 1'
Crítica de "Harry Potter e as Relíquias da Morte - Parte 1"
SOS Hollywood - novembro de 2010
Por Fábio Melo Barreto



Hollywood conhece bem suas regras e sabe segui-las. É um negócio lucrativo, capaz de resistir a crises e, até o momento, as grandes mudanças na tecnologia. Os estúdios de Los Angeles foram os responsáveis pela criação dos blockbusters, pelos grandes épicos e sabem o que entregar ao público, pois foram eles quem escolheram os elementos desse cenário lá atrás, quando os grandes épicos da MGM levavam nossos pais e avós ao cinema, um tempo em que ainda se vestia terno e chapéu no programão de domingo. A inspiração nos clássicos e na Bíblia abasteceu essa indústria antes da onda de originalidade dos blockbusters no finzinho dos anos 70, mas a ligação entre cinema e literatura nunca terminou. É mais seguro levar uma obra conhecida, e, normalmente, admirada aos cinemas do que criar algo totalmente novo. Vivemos um novo momento nesses ciclos hollywoodianos com as histórias e quadrinhos, mas também com as adaptações literárias. E elas são muitas. Entretanto, não é só ao sucesso inquestionável de Peter Jackson com O Senhor dos Anéis que essa dinâmica se construiu ao longo dos últimos dez anos, mas também a Harry Potter, assumidamente uma maçaroca cultural e literária montada por J.K. Rowling e que, depois de nove anos nos cinemas, inicia sua conclusão com Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 1. É um filme evento, claro, mas David Yates faz uso do precedente aberto por Zack Snyder, em Watchmen – O Filme, e banca o diretor birrento ao ignorar as leis de Hollywood, seu formato “garantido” de sucesso e, no primeiro ato de sua conclusão, entregar um festival de atuações marcantes, com um ritmo próprio e, felizmente, despreocupado com as caraminholas inventadas pelos executivos do estúdio. Mais que conhecer sua indústria, Yates e Rowling sabem que têm público cativo, têm o interesse mundial nas mãos e, acima de tudo, têm a chance de mostrar que a dobradinha cinema & literatura só resulta numa adaptação fraca quando se pensa no dinheiro antes da qualidade.

Relembrar do final anticlimático de Harry Potter e o Enigna do Príncipe pode ser um primeiro passo na preparação para o clima de Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 1 [HP7]. A queda de Dumbledore desintegrou qualquer resquício da bolha de segurança ao redor dos personagens, mas, de forma mais efetiva, lançou Harry, Ron e Hermione num mergulho sem volta em um mundo inseguro e regido pela morte. Medo deixou se ser uma preocupação. Na guerra, vida e morte são separadas por instantes ou um leve descuido; duas constantes aplicadas a uma família forjada à base de muita dor, perda e um futuro sombrio. Ele retornaria. Ele retornou e futuro é agora. E o agora, é o fim. O início melancólico de HP7 não engana e nem precisa de meias palavras para apresentar tanto sofrimento latente. Uma última olhada no quartinho embaixo do armário; um triste adeus a sua própria identidade; um olhar por uma janela estranha e nada reconfortante. Escolhas acertadas por conta do grande trunfo do longa: o público conhece demais os personagens e, logo de cara, já sente suas escolhas e mazelas. O sentimento brota logo de cara e não para nem por um instante ao longo das 2h26 de duração.

Seguindo a mesma assinatura visual dos últimos dois filmes, David Yates construiu bem sua guerra – que acontece mais no plano psicológico do que no físico, em termos de tempo dedicado no filme. De qualquer forma, não era sem tempo, afinal, Rowling vinha anunciando o grande embate entre Harry e Voldemort desde o começo da saga do bruxinho. Ha! Bruxinho! Bons tempos. Harry deixou a inocência de lado, mas, guiado pelo idealismo de sua criadora, ainda insiste no caminho da bondade suprema. Amigos, colegas, familiares… todos morrendo a sua volta e, nem mesmo assim, Potter é capaz de devolver na mesma moeda. O matar ou morrer não funciona para os mocinhos de Rowling, sempre dispostos representar seus dogmas mesmo que isso lhes custe a vida. O Lado Negro é indesejável, mas o extremo bom mocismo soa tão caricato quanto a malevolência constante, porém, como Bellatrix Lestrange é doida de pedra – além de dar a impressão de que, se puder, mata seu almoço todo dia só para o prazer de tirar uma vida sempre que possível – esse extremo do espectro é menos sentido. É o diretor respeitando a autora – e produtora. Respeito, um dos grandes diferenciais de HP7 para outras adaptações, especialmente as que tentam desesperadamente preencher o iminente vazio que será deixado pela saga. Eragon caiu no esquecimento rapidamente, Percy Jackson deve seguir o mesmo caminho, Coração de Tinta não funcionou e Cirque Du Freak foi uma vergonha. Não é preciso ser ágil, ninguém precisa ser convencido, final feliz está fora de cogitação e mesmo quem não leu os livros quer saber o que vai acontecer com Harry, Ron e Hermione. Fato. Esse trio entrou para o imaginário popular, logo, seu destino é interessante. Além de ser uma compensação por todos os anos de dedicação à série de filmes, iniciada em 2001.

Sem pressa, tudo pode acontecer com profundidade. Seja um período pensativo de Harry, um lamento solitário de Hermione ou um rompante de fúria de Ron. A guerra parece ser mais pessoal, mais profunda, absolutamente íntima dentro dos personagens principais. Yates garantiu ao trio Daniel Radcliffe, Emma Watson e Rupert Grint todo o tempo necessário para seus ‘monólogos’ solitários, um prêmio por anos de dedicação à franquia. Cada um deles pode ampliar seus horizontes, e reconhecer limitações, em algo – na ausência de comparação melhor – similar a uma pequena peça individual dentro do filme. Toda essa contemplação, aliada um trabalho de fotografia belíssimo, natural e, pasme, simples, é a maior prova da “insurreição” de Yates às regras hollywoodianas. Se a história pedia, ele entregou. Simples assim. Exatamente como Zack Snyder fez quando pisou no freio em Watchmen para que o Dr. Manhattan fosse a Marte e contasse sua história. É o cineasta a serviço da história, independente do que pense o público menos envolvido. HP7 pode soar lento por esse aspecto, porém, jamais perde seu ritmo. É a conclusão de uma saga literária programada e extensa, não um final de trilogia criado às pressas e por demanda financeira. Faz sentido e tem suas próprias regras.

A magia circunda aquele mundo e seus personagens, cujas vidas são mais surpreendentes quando as varinhas estão guardadas e notícias, normalmente tristes, chegam do campo de batalha ou de um amigo querido. Se a gênese de Harry Potter era repleta de truques, ensinamentos e deslumbre com escadarias inquietas, sua conclusão é implacavelmente crua e violenta. Rowling defende alguns conceitos de forma bem clara: heróis não matam (por enquanto); vilões são deformados ou traiçoeiros; e política e nobreza são instituições falidas (vide as constantes falcatruas atribuídas ao Ministério da Magia e a decadência dos Malfoy). A queda de Lucius Malfoy poderia ser digna de pena, não fosse a conduta subserviente e lacaia adotada pelo personagem – em grande momento de Jason Isaacs – e seu inevitável reflexo no inexoravelmente covarde Draco, inicialmente pintado como o arquiinimigo de Potter, mas que, efetivamente, nunca passou de um mauricinho mimado e incapaz de ameaçá-lo de verdade. É a vitória dos mestiços, os half-bloods; o eterno sonho da plebe britânica em se unir à realeza, a síndrome de Diana. Aliás, o racismo e o preconceito contra trouxas e mestiços são abordados em HP7, mas de forma tão aleatória e ineficaz quanto as aparições de Voldemort, mais presente como ameaça psicológica que como inimigo efetivo. O grande vilão ainda não teve sem momento, ainda é uma ameaça assustadora, mas arisca e distante. Assim como num jogo de videogame, Harry parece precisar superar todos os obstáculos do mundo para poder lutar contra o chefão.

Presenças Relâmpago e as tais Relíquias

Longa duração, grande atenção para dilemas pessoas do trio principal, mas, como em toda reta final, muita gente precisa aparecer e o resultado são participações relâmpago. Alan Rickman é uma delas, tendo apenas duas cenas; assim como Imelda Staunton, que retorna como Dolores Umbridge, e o recém-chegado, e logo despachado, Bill Nighy, como Ministro da Magia. Brendan Gleeson é uma das maiores lástimas, primeiro pelo descaso com que o destino de Olho-Tonto é apresentado, segundo pela perda do último personagem disposto a lutar de igual para igual contra os Comensais da Morte. Hagrid também aparece pouco. Menção honrosa para Edwiges, que tem dois momentos e ganha a eternidade com seu sacrifício supremo. No final das contas, fica a impressão de um grande desfile de rostos conhecidos, novos nomes que não chegam a ser relevantes o suficiente para serem lembrados e o embate com o aspecto sem face da maldade de Voldemort. Seus agentes provocam o caos, matam sem piedade, mas usam máscaras; não tem identidade; apenas simbolizam sua opressão e sangue frio.

Claro, reflexo direto da opção pelo foco total em Potter, Hermione e Weasley e sua jornada para encontrar e destruir os horcruxes de Voldemort e também da natureza binária da narrativa. são duas partes de um gigantesco último filme, o que modifica a estrutura e, no futuro, ganhará mais força quando for possível assistir aos dois, em seqüência, e sem meses de intervalo. Analisando HP7 como produto independente – sem apoiar suas escolhas no roteiro do livro e nos detalhes dos personagens – nota-se grande preocupação com a ambientação e a construção do verdadeiro clímax dessa história, que só acontece na Parte 2. Entretanto, a simples noção do embate entre Harry e Voldemort desintegrou-se com a destruição das varinhas irmãs e a introdução das Relíquias da Morte, um conceito apresentado apenas no livro final. Três artefatos feitos pela Morte. Dois deles conhecemos: a capa da invisibilidade usada por Harry e a varinha de Dumbledore, um deles ainda é um mistério; a pedra capaz de ressuscitar os mortos. Sua descoberta é tão importante quando a destruição dos horcruxes – que tornará Voldemort mortal novamente -, pois quem reunir as três peças, terá o controle sobre a Morte.

Enquanto nada disso acontecer, ser amigo de Harry Potter significa poder morrer a qualquer instante. Trouxa ou elfo doméstico, coruja ou bruxo. Nenhum lugar é seguro. Nenhuma lágrima é contida. É a dura realidade da vida humana, enfrentar a mortalidade. Cabe a cada um escolher se o fará com honra e dignidade, ou desespero e sangue nas mãos.

No universo de Harry Potter, vida e morte sãs as únicas constantes. Os bruxos se digladiam pela eternidade, enquanto David Yates mostra a Hollywood que é possível viver sem futilidade; dirigir sem destruir o material base; matar sem pensar no licenciamento; e ousar em benefício do público. Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 1 é uma porrada emocional, capaz de fazer rir, sentir e chorar, um filme histórico por circunstância e magnífico por mérito. É a magia a serviço do cinema.